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Ao cair da noite

Se apresentava como Ariane. 

Além de um sorriso incomparável, tinha uma inteligência superior. 

Adorava o que fazia. 

Gostava de dizer que suas escolhas definiram tudo que é na vida.

E não era difícil de entender. 

 

Ao falar das suas escolhas, seus olhos brilhavam e externavam uma felicidade que chegava a iluminar. 

Seus olhos tinham uma cor diferente.

Sua pele clara, denotava pequenas sardas, o que completava com um tom diferente a sua cútis.

Os cabelos louros.  Mas confessou que em outras vezes usou tons mais escuros, principalmente castanhos. 

Fosse a cor que usasse, dificilmente apagaria seu brilho.

 

Encontrei-a caminhando, ao entardecer, pela areia da praia. 

No seu jeito adolescente, chutava a areia e fazia marcas com os pés.

Por um longo tempo fiquei observando aqueles passos, dançando com o mar.  

Da forma que caminhava e parava, passava a impressão de que desenhava castelos na mente. 

 

De longe, eu tentava entender seus pensamentos. Difícil.

 

Eu sou um alguém que não tenho muito para falar. 

Nasci a beira da estrada. Sempre gostei de música. 

Tentei fazer umas canções, mas deram em nada. 

Não tinham contexto. 

Alguns escritos que produzi, retratavam a vida cotidiana das pessoas conhecidas.

Agora estou morando na praia. Coloquei a mochila nas costas e parti. Sem destino. 

 

Parei na praia onde estava Ariane.

 

Fui em direção ao mar. A brisa também me encantava. 

Tinha vontade de seguir os seus passos. E fui.

Deu-me a impressão de que ela notou porque diminuiu a marcha, como se estivesse esperando chegar perto. 

- Que fim de tarde lindo. E a água do mar está começando a esfriar. Arrisquei.

Silêncio total. Falar o quê? 

- Eu amo o mar. – disse - Chego a ter longos sonhos com a praia e esta imensidão de água. 

 

O som das ondas. Este cheiro de areia. Gosto de água. 

Me senti confortável para continuar a conversa.

Me apresentei.

Ouvi, atentamente, sua voz ao se apresentar. 

- Eu sou Ariane.

- Estou aqui para descansar. Precisava. 

Descansar a mente. Reciclar os pensamentos.

 

Já havia ouvido o termo reciclar pensamentos” e não entendia. 

 

Pude ver que tudo aquilo que ela fazia, andar pela areia, livre, sentindo a brisa, era uma reciclagem. 

Estava realmente jogando velhos pensamentos, muitas vezes inúteis, e trocando-os por novos. Por novas vivências. Novos momentos. 

Caminhamos por quase toda a orla. 

Nem notávamos o cair da noite. 

 

Ao longe, o reflexo da lua já começava a tocar o mar, bastante calmo, lá no infinito. 

O céu estava limpo.

Era lua cheia. 

Tão cheia que despontava, numa tonalidade avermelhada, como se estivesse saindo das águas e subindo para o céu.

 

Sentamo-nos.

- O que vem a sua mente um luar lindo destes. Perguntou.

 

Fiquei sem palavras. 

Olhei para o seu rosto e a luz da lua iluminava-o. 

Destacava os seus olhos castanhos.

Um milhão de pensamentos vieram. Qual escolher.

- Aqui. Escolhi. Aqui e agora. 

 

- Estamos caminhando, conversando.  Há pouco tempo nem sabíamos das nossas existências. 

Me lembrei que sempre fui um defensor do momento. Do aqui e agora.

- Explica este lance de o momento. Pediu.

Calei-me um instante. 

Como vou explicar. 

 

Fui direto.

- Entendo que quando envolve pessoas, não adianta muitos planos. 

O que vai decidir o que é melhor é ali, naquele instante.

O momento em que houve um encontro dos pensamentos. Encontro das vontades.

Ela ficou em silêncio. Eu também. 

Nem eu mesmo entendi o que quis falar.

 

Fomos para a calçada. A escuridão já havia tomado conta da praia. 

- Já está tarde. Disse. Preciso voltar para a pousada. 

Meus amigos já estão preocupados. 

Engasguei-me. Foi um tempo que passou muito rápido. 

Queria prolongá-lo. 

Tomei uma atitude ousada.

- Vamos caminhar amanhã, mesmo horário? 

Um silêncio abateu. Me olhou. Pensou. 

- Combinado. Mesmo horário. Mesmo local.

Fui com ela até a porta da Pousada. 

 

Um adeus. 

Bons sonhos.

Retornei para o meu canto.

 

A noite foi uma companheira para compartilhar os meus pensamentos.

Um pouco extasiado, tentei me convencer que qualquer atitude ainda seria muito inoportuna. 

A noite a vieram as imagem dos seus olhos, seus cabelos flutuando ao som do vento e os desenhos com os pés pela areia.

 

A noite demorou a passar. 

Queria que passasse rápido.

Levantei e fui repassar uns roteiros que estava preparando. 

Não tinha pressa, mas precisava terminá-los. 

Teria mais tempo para caminhar pela praia.

 

Havíamos marcado de caminhar no final da tarde. 

Ao sair do mar depois de um mergulho, vi alguém sentado ao lado da minha toalha. 

Fui em sua direção. Precisava saber quem era.

 

À medida que chegava perto sentia o vento mais forte. 

Sentada, observando o mar, estava Ariane. 

- Estava observando você. Tem medo de água, não é? 

- Sim. Um pouco. Aliás, muito. 

- Não consegui esperar até o final de tarde. Passei a noite pensando no nosso passeio.

 

Não posso dizer que não entendi nada. Fiz o mesmo.

- Vamos para outra praia, perguntei. 

Veio o receio de ouvir um não. Mal me conhecia.

- Vamos. Praia dos Albatroz? 

- Pode ser.

A praia não era tão movimentada como a outra. 

A areia, um pouco mais clara e o mar mais calmo. 

 

Água de coco. Bastante água.

- Quero tomar vinho. Me acompanha? 

- Sim. Vamos lá. 

 

Não é comum encontrar bons vinhos na praia. 

Mas tentei. 

 

Tenho preferência por vinhos mais fortes. Hoje não. Pensei.

 

Escolhi um vinho mais macio”, fácil de tomar, marcante.

- Como você adivinhou que gosto muito deste vinho?

- Posso ouvir seus pensamentos, falei.

Foi uma risada em uníssono. 

 

Pedi água de coco para acompanhar. A água, tanto de coco quanto mineral, ajuda a tirar o vício da boca deixada pelo vinho. 

Então é recomendado, de tempo em tempo, tomar um pouco de água. 

Os entendidos dizem lavar a boca” para não perder nenhum momento” do vinho. Mas o principal motivo é combater a desidratação. 

 

E assim passamos algumas horas nos conhecendo. 

Uma garrafa de vinho não foi suficiente para o tempo. 

Conversávamos como amigos de longa data.

 

Peguei a sua mão. Olhei a palma, fiz um gesto cigano de leitura de mãos e fingi que estava adivinhando o passado e prevendo o futuro. 

- Você ama muito o que faz. Se dedica à sua escolha profissional como a você mesma. Tem mais pessoas na sua vida que você ama e dedica toda sua existência

- Como você sabe de tudo isto? 

- Experiência. Menti. Foi um chute mesmo.

Fiquei esperando-a falar que não era nada daquilo. 

Duvidava que ela não concordaria que não ama o que faz 

 

Silêncio. Estávamos tentando descobrir o que fazer. 

Peguei a outra mão. Com as duas, apertei-as dentro das minhas.

- Sentia esta energia. Logo veio um olhar adolescente.

 

A energia das mãos se transformou em beijos. 

Beijos que não queríamos que acabassem. 

E não deixamos acabar. 

 

Senti um movimento. 

 

O ônibus havia passado em um sobressalto na pista causando um solavanco. 

Tentei voltar a dormir.

O cheiro de água do mar veio imediatamente. Chegava ao meu destino.

 

O sonho terminava ali.

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