Dona Genoveva é uma senhora de sessenta de poucos anos.
Nasceu em uma cidade interiorana do estado de Amazonas, mas não lembrava o nome. Acreditava que tinha alguma ascendência indígena.
Como ela mesma dizia, aprendeu a fazer filtro dos sonhos com seus pais na adolescência.
Do seu jeito especial consegue construir um filtro para cada pessoa, ouvindo os relatos dos anseios e sonhos de cada um.
São sonhos tristes, sonhos alegres, sonhos de vitória, sonhos de derrota, sonhos de saudades, sonhos de toda forma.
Encontrei com ela logo no início da manhã, por volta das nove horas, naquela quinta-feira de outono. A temperatura estava amena, por volta dos 20 graus.
Assim que cheguei ela me levou para o seu ateliê. Uma sala com 30 metros quadrados, prateleiras amplas e bem divididas, uma mesa grande ao centro onde fazia o seu trabalho. Tudo muito organizado.
Disse que usava o local para suas costuras e para fazer artesanatos, principalmente os famosos filtros dos sonhos.
Em um canto ficava uma chaleira térmica com água quente, algumas xicaras e potes rotulados com camomila, folhas de rosas, alecrim, erva-cidreira. Bem ao lado, um pote de vidro com biscoitos muito brancos.
Foi logo dizendo: “– aqui é o cantinho do chá. Vou preparar um de camomila. Estou sentindo que você está muito ansioso”.
Colocou duas colherinhas em um infusor e levou à xicara com água quente.
Fiquei sentindo o cheiro da infusão. Passados cinco minutos ela me disse que já estava no ponto para beber.
Degustei o chá calmamente, enquanto ela falava dos filtros dos sonhos e seus significados.
Entendi que o que muda muito na construção de um filtro são as cores dos fios, a forma com que são entrelaçados e a origem e cor das penas. Foram muitas informações sobre os filtros, sua forma de construção e finalidades.
Agradeci muito pelos ensinamentos. Contínhamos.
– Dona Genoveva, um dos motivos, além de saber mais sobre o filtro dos sonhos é pedir auxílio para resolvermos alguns assassinatos.
– Já foram três assassinatos. Em cada um foi colocado um pequeno filtro, com cores e desenho diferentes. Mostrei os três pacotes. Ela pediu para manusear, mas ofereci umas luvas descartáveis, informando que se tratava de uma prova de crime e não poderia ser manuseada sem proteção.
– Entendo a sua preocupação, filho. Não vou alterar nada. Mas preciso tocar os filtros para sentir as energias de cada um. Vai me ajudar muito.
Permiti. Afinal a prova já havia sido periciada.
Ela fez um pequeno ritual.
– Sabe. Filho, é preciso pedir autorização para tocá-lo, sentir sua energia e ouvir o que tem para falar.
Notei que ela ficou desconcertada. Fez uma parada, pensou e falou:
– Cada filtro carrega consigo a essência do seu criador. É uma energia que faz o filtro ser único. Um dos principais detalhes são estes entrelaçados no centro. Está vendo este aqui. O entrelaçado faz um coração. Isto quer dizer amor. Acredito que o motivo do assassinato foi amor, paixão ou desprezo. Estes três motivos estão ligados a relacionamentos de apego, vontade, paixão pela pessoa que o recebe.
– Este outro tem uma rosa. Embora tenha um significado de amor para nós, nos rituais dos círculos dos sonhos significa desprezo. É visto assim por que a rosa, na sua delicadeza, alegra e depois entristece quem recebe, depois que seca.
Imagino que o motivo do assassinato foi o desprezo que a pessoa assassinada tinha pelo assassino.
– Por fim, este outro traz uma estrela de seis pontas. O significado é perdão. É tecido para ser entregue a alguém a quem se pede perdão. Os motivos podem ser por traição, falta de atenção ou até mesmo por não ter qualquer sentimento por quem receberá o presente.
– Agora o ponto mais importante. Por estes nós de acabamentos pode-se dizer que os três assassinatos foram cometidos pela mesma pessoa. É a assinatura de quem fez estes círculos.
– No entanto, não se pode concluir que o assassino é quem faz os filtros. Mas também não elimina a hipótese. Eu nunca vi esta assinatura. Não é de nenhum dos artesãos que conheço.
– Olha, poderão ocorrer outros assassinatos. A energia que sinto ao tocar estes círculos é de profunda tristeza e ódio. O assassino está com o coração muito partido e tenta compensar sua dor retirando a vida de pessoas conhecidas, na procura de um pouco de paz.
Quando estava saindo, Dona Genoveva apanhou um círculo e me entregou.
– Leva este. É para proteção. Você vai precisar. Coloque-o bem próximo do seu local de dormir. E faça sempre como os círculos: Aja com o coração livre.
Fiz uma última pergunta a Dona Genoveva: – o que precisa saber para criar um filtro com tanta informação, iguais a estes?
– Estudo. Muito estudo. A pessoa precisa ter vivido muito para este aprendizado.
Agradeci.
A caminho de casa deparei com um vendedor de filtros dos sonhos. Expunha muitos, de cores e tamanhos variados. Uns com penas de aves, sementes e miçangas.
Parei e fui observar cada um. Eram vários. Procurei pelas assinaturas que a Dona Genoveva falou, mas não encontrei nada similar.
O Sr. Gildo Otávio, artista que vendia estes filtros, foi aproximando e logo dizendo: – “Boa tarde, doutor. Gostou dos filtros dos sonhos? Eu mesmo que os faço”.
– Boa tarde, respondi.
– Bonitos filtros, comentei.
– Quais as diferenças entre eles?
– As diferenças estão nas cores, tamanhos e materiais usados. Além de objeto de decoração, são usados para filtrar os sonhos.
– Cada parte tem um significado: o círculo representa a eternidade, o círculo da vida e o sol que nos ilumina.
– O centro representa o nosso interior, a teia nossa alma e o livre arbítrio; as penas, o ar, a sabedoria e a coragem. Considero esta parte a mais importante, porque fala da pureza do nosso coração, que define o bem e o mal.
– As pedras representam a cura e eliminam os nossos medos e tristeza e, finalmente, as cores do filtro estão ligadas às sensações e demonstram o humor e a personalidade.
– Como você faz para construir um filtro destes para cada pessoa que vem comprar? São escolhas individuais? – Perguntei
– Sim, respondeu. Cada pessoa escolhe o que mais lhe chama atenção.
Continuei com as perguntas.
– Seu Gildo, estou com três filtros encontrados em uma cena de crime. Poderia olhá-los e dizer alguma coisa?
– Claro.
Passei os três envelopes plásticos. Nada de pedir para tocar. Olhou de um lado e de outros. Ficou um pouco desconcertado.
– Estes filtros foram criados pela Dona Genoveva. Ela sempre faz o centro dos filtros como se fossem individuais, representando a pessoa. Conversa com ela. Está aqui todo domingo na feira de artesanato.
– Mas desculpas. Não posso falar mais nada. O Sr. Gostaria de comprar um filtro destes para decorar a sua casa? Pode escolher.
Escolhi um, tamanho médio. Uns 20 centímetros de diâmetro. Paguei, agradeci e continuei meu caminho para casa.
Cheguei em casa e pendurei ambos os filtros na parede. O que ganhei da Dona Genoveva e o que comprei do Seu Gildo. Não queria acreditar que um dos dois artesãos poderia ser ou saber quem era o assassino.
No domingo fui conhecer a feira de artesanato que fica no centro de uma praça. Um lugar muito colorido por causa dos objetos artesanais. Vários artesãos tinham nas suas barracas filtro dos sonhos para vender. Mas em pouca quantidade. Menor do que nas barracas da Dona Genoveva e do Seu Gildo.
A barraca da Dona Genoveva estava com vários clientes. Ela demonstrava um conhecimento muito bom sobre os filtros, contava para os presentes que tinha origem indígena e que aprendera a construir os filtros na sua aldeia.
Quando cheguei ela dispensou todos os presentes e veio falar comigo, logo perguntando: “– o filtro dos sonhos que você colocou na parede deixou você mais tranquilo?”. “– Um deles foi escolha minha e o outro, escolha sua.”
Quase caí no chão de surpresa. Como ela poderia afirmar tão enfaticamente que eu havia dependurado o filtro que ganhei e o que comprei do Seu Gildo.
Havia chegado em casa já tarde e ninguém me viu colocando os filtros na parede e, muito menos recebi visitas. Foi o tempo de tomar banho e ir dormir.
– Você deve estar assustado como sei destes detalhes. O Seu Gildo me contou que você esteve aqui, conversou sobre os filtros e comprou um. É natural que as pessoas cheguem em casa e pendurem na parede. Nada do outro mundo.
– Você foi visitar o Promotor, o Dr. Jesualdo? Ele esteve comigo há uns dias e encomendou quatro filtros personalizados. Inclusive deu o nome de quatro jovens e pediu para incluir os nomes delas na montagem dos filtros. Disse que era para presenteá-las.
– Anotei os nomes. Espera aí, vou buscar minha caderneta. Está aqui: Julieta, Jussara, Joana e Janice. Disse que elas tinham muita semelhança com sua esposa, que morreu de câncer no ano passado. Falou que a sua esposa se chamava Júnia.
Alguns pontos me chamaram a atenção:
– Não disse o nome das mulheres assassinadas. Sabia da morte da esposa do promotor, mas não conhecia os detalhes. Na época ele evitou falar sobre o assunto e fez o sepultamento na cidade de nascimento dela. Dizia que era para ficar com a família e que não suportaria tê-la sepultada tão perto.
Cheguei em casa e fui confrontar as datas. Para minha surpresa, o Dr. Jesualdo havia viajado logo depois que a Dona Genoveva entregou os filtros, para visitar a sua família, residentes a 1200 km de distância. Os crimes aconteceram durante a sua ausência. Nada o ligava aos crimes, inclusive a morte da esposa. Contudo havia suspeitas que ele nunca fora casado.
A Dona Genoveva sabia de muitos detalhes da investigação, exceto que o Promotor havia viajado e que ele nunca teve uma esposa.
Quando levei o assunto ao Departamento, fui orientado a arquivar o caso por falta de solução. Disseram que não era possível, pelas minhas investigações, chegar a um assassino. E também que estava visitando pessoas muito influentes da cidade e poderia causar impactos severos à Polícia.
O caso foi encerrado e arquivado.
Um tempo depois, enquanto tomávamos uma cerveja no bar do Seu Eugênio, fiquei sabendo que a Dona Genoveva e o Seu Gildo tiveram filhas assassinadas e, juntos dos corpos, foram encontrados filtros dos sonhos. Elas eram muito amigas. Uma se chamava Janice e a outra, Júnia.
Autoria: Matosinhos Mateus de Andrade
Revisão: Getúlio Brasil Maia